Sobre as psicoses
Imaginemos um paciente psicótico que tenta raspar um santinho de papel de nossa senhora para tentar encontrar, sob o desenho do vestido, a nudez da santa. Eis um exemplo notável do que identificamos, nas psicoses, como uma falência da distinção entre o meramente fantasiado e o real compartilhado.
Assim, aquilo que poderia ser visto como a base da arte criativa (vejam a segunda imagem), isto é, imaginar o impossível ou brincar com o que não existe, nas psicoses há algo que "vaza" para fora do campo imaginativo.
A meu ver, sempre haverá um limite esfumaçado entre a normalidade e a psicose. Um artista muito criativo precisa aproximar-se de suas experiências psicóticas - perder ou desconstruir as noções compartilhadas de identidade, espaço e tempo, p.ex.
A loucura sempre terá uma definição política. Escolheremos, a partir de nossa comunidade moral comum, o que é "exagerado" ou excessivo e o que é "devidamente compartilhado". A religião é um ótimo exemplo: temos quase tudo que é psicótico nesse campo. Alucinações, delírios, distúrbios de identidade... mas como o laço social autoriza, até certo ponto, esses evento como normais, esticamos a noção de normalidade para fazer caber boa parte da humanidade que está certa de conversar com seres imaginários ou crerem poder duplicar-se numa alma eterna.
O que incomoda na psicose é esse elemento não compartilhado, uma certeza muito individual, uma inflexibilidade ali onde se espera mais porosidade... em especial, entre a fantasia própria e o conjunto de crenças comuns.
É razoável crer-se amado por um deus, mas não é acreditar que se é um deus. É razoável acreditar na representação gráfica de uma santa, mas não é ter certeza de que ela está nua sob o papel.
As psicoses continuam sendo o diagnóstico mais importante sobre o que consideramos normal dentro de uma comunidade moral específica. Em tempos de "pós-verdade", essa definição tem se tornado cada vez mais complexa.
Book of hours, Flanders c. 1485
Kraków, MNK 3025 I, p. 469-470