A excelente série “Adolescência”, da Netflix, é um convite para conversarmos sobre a adolescência, em especial, a dos meninos.
O texto a seguir contém spoilers!!
Há alguns pontos que comentarei em vídeo a ser disponibilizado no canal:
1) o que é adolescência para psicanálise?
2) como os códigos de gênero endereçados aos meninos se articulam com o inconsciente?
3) o que é a violência do bullying e da adolescência?
4) qual o limite da responsabilidade dos pais sobre a ação de seus filhos?
Para a psicanálise, a adolescência é o período marcado pela chegada do que deveria ser o amadurecimento sexual do humano. Os marcadores biológicos visíveis a partir dos 12 anos em média indicam o início de grandes mudanças: pêlos pubianos, crescimento dos seios, desenvolvimento genital, a capacidade de gerar bebês…
O lugar da sexualidade biológica, no entanto, já está todo ocupado pela sexualidade infantil. Quando o “instinto” chega, a pulsão já está no comando. A adolescência passa a ser o momento de consolidação das identidades - em especial a de gênero. Essa identidade é constituída por códigos sociais que servem, na verdade, para estabilizar o Eu em torno do falo e da genitalidade, recalcando a sexualidade infantil.
O binarismo fálico / castrado é um dos códigos identitários mais poderosos em nossa cultura. Para os homens, ele será endereçado como uma série de injunções: mostrar a virilidade por meio do sexo e da violência, recusar todo tipo de intimidade e complexidade afetiva, recusar a empatia, em especial com todos não-homens.
Os códigos de virilidade servem para recalcar, portanto, a sexualidade infantil - o ursinho na cama de Jamie, seus desenhos lembrados pelos pais… tudo isso vai ficando de lado. Entra em cena o grupo social, fonte libidinal que irá substituir em grande medida a família. O adolescente procura seu pertencimento no grupo, entre seus pares, criando um mundo fora do alcance familiar.
Os códigos que visam a subjetivação dos homens conduzem à violência dos homens contra os homens - em competição pelo status viril - e à violência dos homens contra os não-homens, em especial, aos gays efeminados e às mulheres. A constituição sexual dos homens é, fundamentalmente, misógina.
Há diversas fontes para compreendermos a força da virilidade como código. A primeira delas é a inveja dos homens direcionada ao seio e ao útero. O corpo produtivo da mãe e da mulher é objeto de intenso investimento libidinal no início da vida de todos nós. É impossível não se identificar e também não desejar ter e ser esse corpo. Uma das tarefas psíquicas dos homens, a mais complexa de todas, é justamente se afastar desse corpo desejado / invejado. Podemos pressupor que, quanto mais violência for necessária para elaborar esse afastamento, piores foram as simbolizações disponíveis para situar a mulher num lugar de respeito e/ou desejo.
Uma outra fonte que explica a força da misoginia e do machismo é a recusa à passividade originária. Faz parte da ideologia falocentrica associar o feminino ao passivo - a imagem do corpo penetrado sempre será o modelo sexual da passividade. Com a associação entre passividade e feminilidade, temos uma via facilitada na cultura que possibilita, via identificação projetiva, uma solução simbólica para os homens: não sou eu o passivo, é ela. Apassivar o outro torna-se uma compulsão: nas lutas, no bullying, na misoginia cotidiana.
Sem essas fontes sexuais, a luta de classes perderia boa parte de sua força constituinte. Obviamente, alguns milênios de história produzem instituições que, como diz Bourdieu, são estruturas estruturantes da dominação. As engrenagens do poder simbólico, as incríveis maquinarias disciplinares que formam os sujeitos (a igreja, a escola, as redes sociais): tudo isso são as vias sedimentadas da cultura que acabam por forçar certas traduções das invejas originárias e do horror à passividade da forma falocêntrica e misógina como temos feito.
Diante desse estado de coisas, é importante que conversemos sobre a responsabilidade dos pais. A família é a primeira máquina disciplinar das crianças. A docilização de seus corpos e mentes depende dos romances familiares. Não há subjetividade se não houver algum tipo de hospitalidade. Crianças, no entanto, não são tabula rasa que simplesmente obedecem seus pais ou os imitam de forma automática. Os processos de elaboração e tradução são igualmente inevitáveis: cada criança vai traduzir, elaborar aquilo que recebe de seus pais e de seu entorno. Na série, aliás, a comparação entre Jamie e Lisa (sua irmã) aparece algumas vezes para marcar isso: ambos têm os mesmos pais. Apenas o sexo/gênero é suficiente para explicar destinos tão distintos?
Quando Jean Laplanche sugere o deslocamento da responsabilidade para a resposta, ele está nos convidando a pensar justamente nessa dialética: os pais são responsáveis, mas as crianças participam do processo também. Os pais começam o jogo, excitam, fornecem material tradutivo, ajudam, traumatizam… mas as crianças também traduzem, elaboram, transformam o material recebido diretamente deles e também de seu entorno.
A cena recapitulada duas vezes, do pai virando o rosto para não ver como Jamie não sabia jogar bola, recebe interpretações distintas de Jamie e Eddie. O pai está envergonhado pela pressão social - que, aliás, é um elemento central nessa cena… o riso dos outros pais. Jamie interpreta esse olhar como vergonha do próprio pai… que tenta ainda outras formas de convocar Jamie para a virilidade: as lutas, os esportes… Convite bem diferente daquele que Eddie recebeu do próprio pai: o espancamento sistemático que ele se recusa a repetir com o filho. Jamie sabia dessas histórias?
Outro pai aparece brevemente na série: a relação entre o policial Bascombe e seu filho também é marcada pela extrema dificuldade no diálogo e na proximidade. Os pais devem se esforçar cotidianamente para renascerem da recorrente “destruição” que os adolescentes lhes endereçam. A cena de Bascombe convidando o filho para comer algo depois da escola é bastante eloquente dessa dificuldade e desse esforço de sobrevivência. (A sensação que tive, até pelo momento em que o filho diz para não ser chamado de filho, é que Bascombe é um padrasto, alguém ainda se aproximando de um enteado).
Toda série apresenta o laço social como extremamente aversivo: a escola é absolutamente incompetente em conter a violência dos adolescentes… o bullying acontece até com policiais ali dentro (para desespero dos que querem militarizar escolas). Os vizinhos da família Miller são agressivos… parece não haver muito acolhimento em parte alguma. O crime imperdoável de Jamie será punido eternamente.
Na adolescência, a pobreza binária, a radicalidade das opiniões são hiper inflacionadas. Tudo ou nada, homem ou mulher, certo ou errado… os ataques pulsionais aproveitam o enfraquecimento das defesas que até então estavam seguras no corpo da criança. A chegada do campo instintivo coloca o corpo do adolescente como objeto e sujeito sexual. As defesas precisam ser recompostas, uma nova compreensão do que é ser para o outro precisa ser constituída. O recalcamento de ser objeto sexual para alguém precisa ser superado. Fora dos romances familiares, o adolescente precisa encontrar um lugar para o desejo.
Quando lemos O senhor das moscas, um romance que trata também da violência dos meninos, temos a impressão semelhante ao assistirmos a série da Netflix: os homens são terrivelmente incapazes de manejar afetos sem serem tomados pelo ódio e o gozo sádico como resposta automática ao horror da passividade.
O discurso dos “incel” (celibatários involuntários) é a versão psicótico-perversa da ideologia que constitui os homens. 80% das mulheres desejam 20% dos homens; as mulheres não amam os feios; as mulheres precisam pagar por não me desejarem… O discurso é psicótico porque parte de uma generalização imaginada e atribuída ao outro, recusando de forma absurda os matizes infinitos do que é a estética, dos jogos de poder envolvidos nas relações amorosas… O discurso também é perverso porque ele sempre visa tratar a mulher como objeto, sem nenhum direito à subjetividade e à escolha - se ela pode escolher, só pode e deve escolher a mim, o bebê maravilhoso que deve ser amado por todas as mulheres do mundo.
O menino adolescente é uma presa fácil de discursos radicais. Ele precisa de forças viris, firmes que o auxiliem a manter o binarismo intacto: eu sou completamente homem, completamente viril… o outro é passivo, mulher, gay, pobre, feio. O fálico é constituído pelo que é simbolicamente aceito e reconhecido socialmente como valioso. E a todo momento o fálico exige mais provas de sua firmeza e potência: pular um muro, andar em alta velocidade, usar drogas… matar alguém. A cena incrível com a psicóloga deixa muito evidente a dificuldade que Jamie tem para conversar, falar sobre os afetos. Jamie estaria cindido? Teria feito uma clivagem a partir da violência oriunda dos redpills e incels das redes sociais? A psicóloga, corretamente, precisa confirmar se ele sabe efetivamente o que é um assassinato. Ele sabe a dimensão e o significado de seu ato? Sabe da proporcionalidade dele e da recusa da vítima em ficar com ele? O fato de ele sentir sua rejeição como inevitável aponta para o julgamento (interno e externo) extremamente cruel que cai sobre ele - restos encriptados de um avô que espancava crianças?
Há muito o que dizer sobre a série. Um último comentário: a técnica do plano sequência é uma escolha acertadíssima do diretor. Aumenta nossa tensão, sem pausa para respirar. O suspense é crescente. Um pouco como, nós, pais, sentimos a adolescência. Será que vai dar tudo certo? Será que deveríamos ter feito um pouco a mais? Será que fizemos o suficiente? Como disse, o campo da responsabilidade deve ser deslocado para a resposta. Ampliar também os atores envolvidos na fundação da subjetividade é importante para evitarmos centralizar apenas na família a responsabilidade do que acontece com nossos adolescentes. Quando Jamie diz que assume a culpa, não devemos nos apressar e condená-lo individualmente pelo que fez. Certamente, ele deve ser punido e responsabilizado. No entanto, a psicanálise deve nos auxiliar a pensar sua passagem ao ato também como um gesto coletivo, aquele que se reproduz numa compulsão à repetição macabra nos números de estupros, feminicídos, violências domésticas… dos homens contra as mulheres.
Excelente discussão. Compartilho aqui minha leitura da série https://open.substack.com/pub/separir/p/adolescencia-e-uma-realidade-sobre?r=1muxlc&utm_medium=ios
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