L'autre fille, de Annie Ernaux e O livro branco, de Han Kang, tratam do luto de uma irmã morta. Em ambos os romances, as protagonistas não conheceram a irmã. A irmã mais velha vive apenas no relato da mãe. Apesar de mortas, vivem.
No livro de Ernaux, autobiográfico como o de Kang, ela fica sabendo da irmã a partir de uma conversa trivial da mãe com uma amiga. A irmã era um segredo até os dez anos da protagonista: “Née et morte dans un récit”, nascida e morta numa conversa.
Aos poucos a protagonista de Ernaux vai reconstruindo essa irmã morta de difteria aos seis anos e que ela era “mais gentil que aquela ali”, aquela ali, apontada pela mãe, era a própria Annie.
A descoberta de um segredo faz com que Annie não seja mais filha única, essa outra “que surge do nada” faz com que ela veja todo o amor que recebera como falso.
Assim como no romance de Kang, fica marcada a ideia de que a escrita é o exercício de luto. Ernaux coloca isso entre colchetes: “[Est-ce que je t’écris pour te ressusciter et te tuer à nouveau?]”, isto é, eu escrevo para te ressuscitar e te matar de novo? E mais adiante: “eu não escrevo porque você está morta. Você está morta porque eu escrevo, isso faz uma grande diferença”. A escrita como um modo ambivalente de trazer a morta à vida, mas mantendo-a morta.
Também nos dois romances, temos a sensação de não haver linguagem suficiente para traduzir a ausência presente da irmã morta. “Tenho a impressão de não ter língua para você, para te dizer, de só saber falar de você pelo modo da negação, do não-ser contínuo. Você está fora da linguagem dos sentimentos e das emoções. Você é a anti-linguagem”. No romance de Kang, temos o incrível deslizamento das coisas brancas, metonímia mnemônica da irmã morta: tentativa de nomear um sem número de coisas na impossibilidade de nomear aquele ser que se foi.
Peter Pan s’est enfui par la fenêtre ouverte après avoir vu ses parents penchés au-dessus de son berceau. Un jour il revient. Il trouve la fenêtre fermée. Dans le berceau, il y a un autre enfant. Il s’enfuit de nouveau. Il ne grandira jamais. Dans certaines versions, il vient dans les maisons chercher les enfants qui vont mourir.
Ernaux nos presenteia com essa interpretação super interessante da história de Peter Pan, o menino que nunca cresce. Peter Pan representa o bebê morto, a criança que não pôde crescer. É ele quem visita as casas das crianças que vão morrer para lhe fazerem companhia na terra do nunca.
Capturada sem estar morta, Annie Ernaux escreve para quitar a “dívida imaginária dando-lhe [à irmã morta], por minha vez, a existência que tua morte me deu. Ou talvez te fazer reviver e remorrer para estar quites com você, com sua sombra. Escapar de você. Lutar contra a longa vida dos mortos”. Nossa protagonista não pertence à terra do nunca e é por isso que ela escreve para sepultar sua irmã, dando-lhe uma vida na ficção.
Kang também vai falar de uma “história de como nasci e cresci no lugar da morte dela”, uma “linda bebê, branca como um bolinho de arroz em forma de lua”. E é justamente esse traço, o branco do bolinho de arroz que Kang vai escolher para falar das coisas transitórias, mas vivas.
“Numa manhã fria, o primeiro vapor branco que escapa dos lábios é a prova de que estamos vivos”. O branco do vapor, das ondas que se quebram: a metonímia mnemônica que tenta ser capturada para falar do que é impossível de traduzir. A dor de uma mãe que solicita, em vão, à sua bebezinha prematura: não morra, não morra. O branco é tudo que resta. A cor do luto, aqui, é o branco.
Como no livro de Ernaux, temos essa culpa terrível: "
Então, se você ainda estivesse viva, eu não deveria estar vivendo agora. E, se eu estou viva agora, você não deve existir.
Como Ernaux, Kang usa a ficção para tornar a irmã viva de alguma forma: “Escrevo com força na folha branca. Acredito que essa seja a melhor forma de dizer adeus. Não morra. Viva.”.
O luto para psicanálise é um processo de envolve o desinvestimento libidinal no objeto. O eu, aos poucos, vai desligando-se do objeto amado e recuperando sua libido para investi-la em novos objetos. Essa é a tese central de Freud.
Nos dois romances, no entanto, vemos que há um trabalho de luto específico quando o objeto perdido não foi investido pelo próprio sujeito, mas por alguém importante para ele. Nos dois casos, o luto (melancólico) das mães se transmitiu às narradoras. Um luto por procuração, por assim dizer. Nesses casos, o trabalho de luto, necessariamente deverá passar por um investimento no objeto. É preciso criá-lo, se apropriar dele de alguma forma, para não ficar presa à identificação mortífera com a bebê que não pôde existir.
Ernaux e Kang criam, cada uma à sua maneira, essas irmãzinhas perdidas (uma bebezinha e uma menininha de dez anos) para que possam, finalmente, perdê-las à sua maneira.
Dois romances breves, porém, potentes e muito bonitos.
Agora entendi pq não conseguir ler esse livro da Han Kang. Ao contrário dela, conheci meu irmão q faleceu com 2 meses de vida, eu tinha 7 anos... Foi devastador, pois temporariamente perdi meus pais tbm, uma parte deles partiu junto com o meu irmão... Ao ler seu texto, percebo um pouco melhor minha dor, vivi um luto por procuração durante muitos e muitos anos ... Obrigada, mais uma vez! ☺️